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Uma crônica sobre saudade: Lata de biscoitos

 

Rio de Janeiro, verão de algum ano.

Gostaria que estivesse aqui para escutar-me recitar o que tenho escrito há dias. E, se aqui estivesse, esforçar-me-ia para não falar das superficialidades que me afligem a vida, em vez de problemas, falaríamos de poemas.

Em mais uma tentativa de racionalizar a forma como amo percebo que a anciã que me ensinou sobre amor talvez o tenha feito de forma errada. Ela já se foi, nem posso mais culpá-la.

O cheiro de terra molhada essa tarde e uma lata azul de biscoitos em uma prateleira do supermercado abriram espaço amplo para as lembranças. O rio de águas cristalinas passeou livremente pelos meus olhos. Tenho chorado com a mesma frequência que crianças choram quando não sabem comunicar algo. Crianças sempre choram.

Alguém inteligente escreveu que existimos para honrar nossos ancestrais, e isso convenceu-me que existo para honrar velhas deusas. Imagino que não tiveram a oportunidade de expressar tudo que sentiam, quando sentiam, e agora talvez eu esteja aqui para recalcular rotas e desfazer legados.

A escrita ora ou outra me encoraja a espalhar novas possibilidades, aquelas que andam extintas em épocas de lagos rasos e autossuficiência exagerada. Estou presa à era de frequentes voos solos e futilidades.

Vó, tu ensinaste-me sobre amor irrestrito, e depois disso já não consigo olhar flores sem enxergar beleza e caos – caos pois flores enfeitam e depois morrem e esse é o grande dilema que rege parte dos tratados atuais: Deixar flores morrerem. E isso não é sobre flores.

Vó, escrevo de próprio punho para a eternidade (onde agora é tua morada), para dizer que tenho admirado voos solos. No entanto, não podemos fugir de quem somos. Preciso de flores que não morram e, como isso é impossível, tomo meu café, escrevo e lembro de você.

Ser quem sou me priva com frequência de viver coisas pequenas e supérfluas, e confesso que às vezes até desejo vivê-las – uma tentativa paliativa de pertencer a esse mundo ainda que por derradeiro instante.

O teu jeito de viver e sentir mora nas minhas entranhas e aqui nessa geografia eles chamam isso de utopia, vó. Comecei essa escrita tentando racionalizar a forma como tu me ensinou viver (ou sobreviver, no caso), mas acho que na verdade, eu só queria um biscoito da lata azul e a tua companhia essa tarde.

Eu estou com saudade, e, inclusive, observei que o biscoito agora está em promoção, mas você já não mora mais aqui  


já não mora mais aqui.

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